Em Setembro de 1858, um homem está sentado num quarto de hotel e escreve um poema dedicado à filha de um amigo seu.
Tu és jovem, e eu sou mais velho
Tu és esperançosa, eu não
Vive a vida, antes que arrefeça
Colhe as rosas, antes que decaiam
Ensina o teu amor a escutar a relva
Porque a luz solar cedo se perde em sombra
Porque agora é tanto como qualquer dia
Para te ter, Rosa, antes que anoiteça.
O Homem sentado à mesa chama-se Abraham Lincoln. Não é sequer um homem velho. Nunca o será.
Longe dali, poucos dias antes de morrer, Manuel de Arriaga dizia a um amigo que a política não é lugar para os idealistas e para os poetas. Mas, para readquirir a temperança, reconhecia querer ter junto de si apenas as suas flores e os seus poetas.
A vexata quaestio é sempre a mesma: diga-se o que se quiser, precisamos de poesia. E precisamos dela sempre. Mas há momentos em que precisamos ainda mais.
Atravessamos uma crise. Mas o que é realmente uma crise? Crise é um momento de abalo, o sismo de tudo que aquilo que tínhamos por garantido, e que subitamente nos desaparece entre as mãos. Atravessámos já muitos momentos assim. Superámo-los a todos. De que nos serviu, então, a poesia? A poesia serviu-nos como o escrutínio derradeiro. É em tempos de cólera, de dolo, de luto, que a poesia nos engrandece e recobra. Em tempos de crise não se é realista, objectivo, material, concreto, preciso, relevante, não se é pragmático, sem poesia. Quando Winston Churchill apela pela rádio em Junho de 1940 à luta contra o avanço nazi é com poesia que ele fica para a história com o famoso “we shall fight on the streets”. Ou Roosevelt que empolga toda uma nação com o "a date which will live in infamy". Quando Kennedy visita o muro de Berlim é na poesia do seu “Ich bin ein Berliner” e no seu “ask not what your country can do for you, but what you can do for your country” que ele viverá para a história. Quando Clinton convoca as energias nacionais para um recomeço é na escrita poética de Maya Angelou que vai encontrar a forma mais pragmática de fazer compreender o seu programa. Os exemplos não terminam.
A poesia adquire, em tempos de crise, não apenas para quem queira ler e amar poesia, mas para quem está em crise, uma relevância insuspeita e poderosa. Existe uma relação antiga e íntima entre poesia e liderança. E nem me refiro à sua relevância motivacional e inspiracional. Refiro-me à sua precisão. No seu duplo sentido. A precisão da poesia permite que um povo inteiro compreenda exactamente, com toda a clareza, o que se pretende de cada um de nós. Por outro lado, a precisão da poesia, no sentido popular da palavra precisão, é porque precisamos de poesia, sobretudo nos momentos em que a angústia nos tolhe os movimentos e nos aperta a liberdade.
De uma coisa podemos estar certos; existe uma classe de pessoas que nos últimos anos se destacaram por errarem descarada e continuamente tanto diagnósticos como veredictos: os economistas. Desses é que não precisamos mesmo.
Precisamos de inspiração, de convicção, alento, alma, sopro, oxigénio, humanismo, acessibilidade, empatia, naturalidade, numa época de voracidade dos valores éticos, sobretudo na economia, precisamos de restaurar esse património referencial e reverencial também na pessoa que institucionalmente queremos que nos represente. Alguém que seja Portugal, porque é isso que é ser presidente da República: alguém que saiba como se é Portugal.
Não precisamos de quem, como Cavaco, nos diga que os tempos são “insustentáveis” e vão ser piores. Precisamos de quem, como Alegre, nos diga que os tempos são “insustentáveis” e vão ser melhores. É essa a grande diferença entre os dois.
Por isso creio nisto: num momento como o presente, não nos podemos dar ao luxo de desaproveitar a severidade potente da poesia.
Fui há dias ao jantar caldense de candidatura do Manuel Alegre. Sala cheia. Fez uma “exposição de factos”, à maneira do Salgado Zenha. Apresentou-nos uma campanha relevante, inteligente e gerida com frugalidade judiciosa. Um belíssimo discurso de quem, evidentemente aprendeu com as últimas eleições. Bem mais acutilante e rigoroso, dominando aspectos fulcrais que, nas últimas eleições, lhe serviam mal nos ombros. Já o disse noutro lugar, aplaudi um discurso digno de quem reassume a extraordinária infelicidade de se ter tornado relevante e, no caso presente, imprescindível para quem se assume de esquerda. É um facto inegável. Leia-se o artigo de Boaventura de Sousa Santos e tomem-se dali decisões. Ninguém poderá deixar de ir votar. Se podemos vencer Cavaco? (Por falar em poesia e presidentes), yes, we can. Ai, não que não can. Desta vez é literal: votar noutro candidato é votar Cavaco. Portugal precisa de uma segunda volta como de pão para a boca.
Nas últimas eleições era Manuel Alegre quem tinha de provar que merecia ter a esquerda do seu lado.
Desta vez é a esquerda que tem de provar que merece Manuel Alegre.
Por isso creio nisto e tive o prazer de o dizer pessoalmente a Manuel Alegre: num momento como o presente, não nos podemos dar ao luxo de renunciar a poesia. Como avisou Lincoln, se não vivermos a vida, antes que arrefeça, se não conservarmos a esperança, “a luz solar cedo se perde em sombra”.