Terça-feira, 18 de Maio de 2004

pisa-papéis e pessoas

pisapapeis.jpg

Hoje visitei dois templos da administração portuguesa: um tribunal e uma repartição de finanças. Tinha de ir aos dois. Impreterivelmente. Recebi dois recados oficiais para que não faltasse, nem a um nem ao outro. Como não sou, por natureza, obediente, resisti muito à minha índole e lá fui, adequadamente recatado.

Entrei na sombrinha do tribunal, renegando uma manhã límpida e quente que me fez perceber que era um bom dia para não ir ao tribunal. A notificação oficial que recebera na véspera nem sequer era tão inclemente como costumam ser estas coisas; tinha um X onde se dizia que deveria aparecer às nove da manhã, mas depois, admitia-se, com meiguice escrita à mão, que o destinatário “Pode vir antes”. Só não fui, porque não era possível entrar antes das nove, senão tinha ido.

Subi as escadas de um mármore a precisar de mopa, cruzei-me com os habituais ciganos que sempre encontro nos tribunais, mais quatro grupos de pessoas sossegadamente impacientes que falavam baixo, e cheguei ao meu destino. Era uma sala minúscula onde se atravancavam três pessoas numa réplica judicial do concurso do Júlio Isidro que encatrafiou 30 pessoas num mini. Aqui, em apenas cinco metros quadrados encafuaram três mesas, três cadeiras, dois computadores, quatro armários, uma aparelhagem stereo, uma máquina de escrever, uma máquina de calcular com rolo, um conjunto de livros que incluía um Paulo Coelho, o omnipresente canhenho encarnado e branco do Código Civil e um manual de ms-dos, um cd-r a dizer The Magic World of the Pan Pipes II, um rolo de linha de seda branca, usada para atar maços de papel e uma máquina fotocopiadora que preenchia 15% do total de chão disponível. Tudo coberto por um pó judicioso.

Um dos funcionários que ali estava em visita matinal aos seus colegas perguntou-me sobre uma rua da cidade. Elucidei-o, embora seja péssimo nestas coisas. Agradeceu-me e logo me adiantou que uma vez o ameaçaram com uma faca, exigindo-lhe cem contos. Ele disse-me que deu muitos murros ao gatuno, negando corajosamente o dinheiro que o patife pretendia. Fiquei muito satisfeito quando ele se foi embora. Vim depois a saber que as pessoas do tribunal queriam-me lá para confirmar coisa nenhuma e vim embora , resignado, dez minutos depois. Quando ia a sair, olhei para dentro de uma divisão enorme do edifício, inteiramente ocupada por milhões de páginas á quatro, atadas com linha branca a milhares de maços amontoados, em centenas de colunas de papel. Processos, pensei eu. Desci as escadas, abismado, passei pelos ciganos e voltei a sentir na pele o aplauso quente e sonoro da luz da manhã.

Saltei um riacho de piche seco e entrei na repartição de finanças. (Sempre gostei da expressão "repartição de finanças". É vagamente utopista. Parece apelar à distribuição justa da riqueza pelas pessoas). Regressemos à repartição. Já ouviram falar do “mundo da finança”? Este é outro. Este é plural. Este é o mundo das finanças. A diferença entre um e outro é que no “mundo da finança” as pessoas gritam, esbracejam, atiram papéis ao ar, compram, vendem, arrematam, golo. Aqui não. Aqui pia-se fininho.

Subi as escadas de um mármore a precisar de mopa, passei por uma fila de pessoas sossegadamente impacientes e fui ter com uma pessoa das finanças que queria que eu pagasse uma conta que já tinha pago antes. Quando a pessoa percebeu o erro, a pessoa explicou-me que este erro era perfeitamente compreensível e, mesmo até para sublinhar a sua convicção, apontou várias vezes para o seu computador. Fiquei, então, completamente persuadido de que o erro era perfeitamente compreensível.
Mandou-me depois falar com outra pessoa que me explicou quantos papéis é necessário que as pessoas das finanças preencham sempre que uma pessoa não paga o que deve. Disse-me que, por exemplo, seiscentos devedores equivalem, na melhor das hipóteses, a sete vezes mais papelada fiscal; que seiscentos processos de dívida originam quatro mil e duzentos papéis escritos à mão pelas pessoas das finanças, (agora percebo por que razão somos obrigados a preencher tantos impressos: é apenas uma legítima retaliação corporativa). Disse-me também que as pessoas que ali trabalham conhecem muito bem os nomes de todas as pessoas que infringem, que são sempre os mesmos, e que, de vez em quando, lá aparece um ou outro que é novo. Quando pensei que ela talvez se referisse a mim, fui-me logo embora.

Quando regressei à minha manhã, pensei em maços e mais maços de papel; pensei nas pobres pessoas que o Júlio Isidro encatrafiou num mini. E concluí que se todo o mundo é um palco, como dizia O do teatro, no mundo dos tribunais e no mundo das finanças, andamos todos aos papéis.
publicado por Rui Correia às 23:28
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De frangipani a 18 de Maio de 2004 às 23:58
Belíssimo. Adorei a alusão aos ciganos... Passei um bom bocado e um bocado bom a ler "pessoas e pisa-papéis"
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