
O ano de 2006 perfaz 463 anos desde que se iniciaram as relações entre o Japão e Portugal. De todo esse tempo temos boas e más recordações. As relações entre o paÃs de Camões e o Extremo Oriente, desde sempre foram motivo de controvérsia. Do mesmo modo que foi português o primeiro ocidental a pronunciar a palavra Jampon - Tomé Pires - e da mesma forma como foi português o ocidental que melhor conheceu a alma japonesa - Wenceslau de Moraes - são também portugueses os primeiros que a subestimaram. Os orientais pagaram-nos na mesma moeda.
A evangelização do Japão é uma das mais sangrentas histórias da História. MartÃrio e ferocidade dos dois lados numa luta de titãs. Sobre a evangelização já muito se disse e muito mais dela se conclui, à s vezes com exageros. A xenofobia oriental pelos Iteki, bárbaros que comem com as mãos e não com os civilizados pauzinhos, foi bem evidente no dia 5 de Fevereiro de 1597. Vinte e seis cristãos foram crucificados. Nunca se tinha crucificado ninguém no Japão por razões religiosas. Foi um verdadeiro requinte de malvadez. As cabeças dos jesuÃtas foram postas a prémio pelo shogun Iemitsu. Mais tarde, no ano de 1637, 40 mil camponeses católicos de Nagasaki resistiram a outro Shogun Tokugawa e foram pura e simplesmente massacrados.
A crueldade foi enorme. Mas é preciso que nos entendamos. O isolamento do Japão não foi contra os portugueses. Foi, sim, contra os portugueses cristãos. Quando, acidentalmente, os portugueses chegaram ao Japão, vigorava, entre as classes mais altas da sociedade nipónica, o Confucionismo; sistema religioso, polÃtico e social que apontava para uma completa obediência à s autoridades tradicionais. No momento em que os Daymios, senhores feudais, repararam que os seus camponeses obedeciam mais aos padres jesuÃtas portugueses do que a si mesmos, crucificaram quantos padres encontraram. Tchu-Hi, um ultratradicionalista defendia mesmo a expulsão imediata de todos os estrangeiros, que acabou mesmo por ser decretada em 1614, pelo Shogun Tokugawa Iyeyasu.
Os jesuÃtas continuaram a ir para o Japão, mesmo sabendo que a sua vida estava em alto risco. Sabiam da morte quase suicida do padre João Batista Porro que foi junto dos governadores de Yiendo dizer que não suportava mais a perseguição que as autoridades japonesas lhe moviam. A sua ingenuidade foi imediatamente executada. Foi então que, em 1549, o padre Rubino confessou em Roma que não valia a pena tentar converter à fé cristã os japoneses. Este povo cruel assassinara todos os representantes da espiritualidade cristã que lá tinham ido. Mas mais tarde ele próprio lá regressará. Foi logo pendurado pelos pés até à morte. Mas ainda assim, os soldados de Jesus estavam convencidos de que o espÃrito japonês acabaria por se dobrar à sua vontade, que era a de Deus.
Porém, o Japão é Shinkoku-Shuji, a terra eleita dos deuses. Manterá essa majestade até aos nossos dias. Até muito tarde, os europeus nunca foram bons diplomatas. Sempre acharam que os orientais deviam sujeitar-se, para seu próprio bem à civilização dos seus tão estranhos costumes. Bárbaros e Civilizadores de um lado e Eleitos e Bizarros de outro. É natural que o resultado desta quÃmica fosse complicado e pouco tolerante.
Nesse tempo ser português ou castelhano era ser navegador. Um bom exemplo da forma como nos (não) entendÃamos com os orientais, e eles connosco, no século XVI, é o episódio da chegada de Fernão Magalhães à s Filipinas. Esse é um episódio que muito nos esclarece como era ser ibérico, navegador, e fazer ao vivo, aquilo de que Portugal e nós, os portugueses, nos orgulhamos hoje tanto: o encontro de culturas. Depois de muito padecer, viajavam há cerca de quinze ou vinte dias, sem avistar terra e com bom tempo. Até que aportaram a uma ilha cujos habitantes trajavam coloridos e finos tecidos. Havia mais por descobrir. Mais ilhas. Uma delas, a maior, tinha o nome de Cebu. Aà viviam quatro reis. Mal o capitão ali chegou, mandou lançar vários tiros de canhão. Impunha respeito e marcava presença. A surpresa e o susto foram grandes. Um dos reis veio à praia perguntar quem era o intruso, o que queria ele e donde chegava. «-Fernão de Magalhães, capitão d'El rei de Castela, trago a paz, amizade e a riqueza para trocar», disse-lhe ele. O rei aceitou as suas palavras, dizendo-lhe que, naquele lugar, os amigos haviam de sangrar do peito e beber o sangue um do outro. E assim foi. Golpearam-se ali mesmo, no peito. As bocas com sangues sorriram de satisfação. Pazes feitas, o capitão quis abastecer as naus dando em troca a sua mercadoria para que os malaios escolhessem o que quisessem. Logo no primeiro Domingo, fez-se a missa em terra para dar a conhecer novas liturgias, afim de trazer para a Cristandade aquelas gentes. O rei foi o primeiro a abraçar a nova mensagem. Toda a população o imitou. Mas os três outros reis e reinos estavam ainda por tomar. Ao saber do poder de Deus Nosso Senhor, dois deles converteram-se. O restante mandou dizer que, se o ameaçarem, ele saberá defender-se. O capitão não gostou e logo ali fez juntar vários homens para destruir os campos do infiel. O padre quis fazer uma oração. Todos se ajoelharam na areia branca e fina daquelas praias, com a mão no coração. O rei daquele lugar disse ao capitão que o acompanharia, com alguns homens. O capitão negou, dizendo: «-Estas são contas do meu rosário». Não se demorou a chegar lá, mas custou; a vegetação, verdÃssima, era densa e sangrava os braços dos soldados. O ar era um lago. As armas pesavam como chumbo mas o capitão não fincava pé. Quando chegaram aos domÃnios do ateu, o capitão mandou armar as espingardas. Os malaios não conheciam nada assim. Tinham arqueiros que caiam como tordos sem que chegassem a atirar. Morriam muitos, mas não deixavam de chegar cada vez em maior número. Foi uma carnificina, mas depois começou outra. Acabou-se-nos a pólvora. Sem o pó preto não tÃnhamos qualquer chance. O capitão não mandou retirar. Nem todos foram bravos como ele. Alguns dos nossos fugiram. Foram mortos na fuga. Só ficou o corpo do capitão cravado de flechas, morto como nunca ninguém o tinha visto, nem a dormir.
A notÃcia da morte do capitão foi tremenda. Ninguém podia acreditar que a resistência infiel à Salvação das Almas pudesse ter abatido o maior capitão da época, o mais devoto e o mais justo. Aquilo que hoje poderá ser entendido como uma justa resistência à opressão estrangeira - que o caso de Timor bem ilustrou - foi durante duas centenas de anos entendida no Ocidente como uma criminosa brutalidade.
De equÃvoco em equÃvoco assim andámos nós nas relações com o Extremo Oriente. Tanto os diminuÃmos a eles como eles a nós. De um lado havia as armas de fogo e Jesus, do outro tÃnhamos o sabre e a flor de Lótus. Da luta entre estas sobrancerias haveria de resultar muito sangue inocente. A história das relações entre o Extremo Oriente e o Ocidente está marcada por esta divisão.
Dividir é sempre bom e mau. Dividir é separar mas é também partilhar. Garantir a individualidade das culturas é a melhor forma de as respeitar. Mas no momento em que uma cultura, sendo única por tão genuÃna, se julga única por ser mais importante do que as outras, então está a construir as suas ruÃnas. Este erro deu-se por parte dos portugueses como por parte dos orientais. Criaram hábitos de desconfiança que não saram com o tempo. Saram com os homens. Nós.