Terça-feira, 16 de Maio de 2006

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Aqui há uns anos atrás tive um projecto. O de visitar tantos países do Norte de África quantos a minha bolsa me permitisse. A minha família não se importava e por isso fui conhecer Marrocos, a Tunísia e o Egipto. Era o que a minha bolsa me permitia, então. Mas o projecto tinha um fundo falso. É que por baixo da minha vontade de conhecer o Atlas marroquino, o Sahara e a majestade monumental de Akhenaton, eu levava de contrabando um furtivo preconceito que percebia ter vindo a crescer em mim durante vários anos. Resumo-o assim: eu não me sentia bem com a presença de pessoas do Norte de África. Já, em várias ocasiões, tivera de me confrontar com pessoal norteafricano que me havia deixado marcas muito desagradáveis. Tinha 7 ou 8 anos quando fui, eu e o meu amigo Gôga, assaltados por dois destes marroquinos. (Chorámos tanto que eles devolveram-nos os nossos timex novos. Na antiga mata das Abadias, na Figueira da Foz). Seja ou não por causa disto e de algumas outras em que o povo africano - norte africano, repare-se na precisão - não ficou lá muito bem visto, o certo é que os anos haviam-me ensinado a não confiar muito nesta gente que só quer é dinheiro, saca a qualquer momento de uma naifa, deixa a barba por cortar, fuma merdas sem qualidade nenhuma e lava-se pouquíssimo. Pessoal que se está nas tintas para a convivência sã. Quer é o seu, egoísta, cúpida e, se necessário, violentamente. E andei nisto durante alguns anos. Até que fui onde a minha bolsa me deixou. E vim de lá outro. Pus-me no lugar. Reconciliei-me comigo mesmo, que a estupidez, como de costume, estava em mim e não lá fora. Dei de caras com um povo maravilhosamente delicado (uma arte e uma gentileza preciosas), profundamente religioso (impediram-me docemente de cumprimentar a minha mulher numa mesquita), um povo são e ordeiro (taxas de criminalidade ínfimas mesmo nas mais decadentes zonas do Cairo velho), humilde (condições de vida rudimentares não abafam a alegria e a generosidade), hospitaleiro (quantas vezes me convidaram a entrar apenas para estar na conversa, num genuíno interesse pelo exterior - filoxenia pura), culto (que conversa inesquecível a que tive com um virtuoso de ud num requintadíssimo clube marroquino, que elevação e que exigência). Enfim, a derruição integral de todas as minhas construções intelectuais acerca deste povo incompreendido. Em menos de uns dias já estava a comprar livros sobre a condição feminina no Norte de África, cds e bilhetes para concertos de música árabe com milhares de pessoas entre as quais apenas eu e a minha Lina éramos os únicos europeus. Devia ter aprendido aí. Mas não. Isto entranha-se. Isto dos preconceitos vem, como é sabido, de uma enorme pulsão pela simplificação das coisas. A vida é complexa. Mas não queremos estar constantemente a lidar com a sua complexidade. Por isso simplificamos. E a forma de simplificar é arrumar as coisas na nossa cabeça. Gavetitas e classificações, rótulos e categorias. Limitações.

Dito isto, vamos pois ao que vos quero dizer.

Ando para ler um livro de uma tal Lya Luft. Confesso-vos que ando mesmo sem vontade de ler um livro da Lya Luft. Não sei quem é a Lya Luft. Mas vou ler um livro da Lya Luft. Mais um preconceito, talvez. De novo. Eu explico. Sei que esta é uma área de leitura que habitualmente me não seduz nada, nada, nada. Vem dali daquelas prateleiras que quase sempre me foram inóspitas (auto ajuda, esoterismo, New ages e coisas quejandas), percebem? Vai daí, ando para aqui a resistir, a resistir. Depois a Lina disse-me assim: "Gostei muito do que li". Depois veio o Luís Silva, com cujo critério quase sempre alinho - ao ponto de ele próprio ler coisas que nunca me passaria pela cabeça ler - e diz-me assim: "Sabes que mais? Gostei muito do que li". Estou, pois, em estado de sítio. Ainda não li o livro. Mas ando em pulgas. Mas antes de me livrar das pulgas, quero interessar-me por aquilo que sinto. E o que sinto é esta sensação estranha de estar com um preconceito em relação às coisas. Quem lê Paulo Coelho, ou Osho, ou Lobsang Rampa ou Nicholas Sparks, ou Dan Brown, ou ou ou ou ou ou toda a parafernália de livros desta natureza, com as suas espiritualidades ingénuas ou complexidades enigmáticas e conspirativas, não faz mais do que a sua obrigação. E a sua obrigação é ler o que quiser ler e gostar do que quiser gostar. E isso é o que é. Doi-me, sinto-o bem, a forma como qualifico, sem me atrever a confessá-lo, quem lê estas coisas. Caio em tentação. Depois arrumo a casa e ponho-me no lugar. Mas não é coisa natural. É cultivada. Por isso, por disparate, preciso muito que este livro me apazigue. Que seja portador de boas novas. Que seja eloquente e que seja esperto. Que me diga coisas que não sei. Que é sempre isso que procuro num livro, numa canção, num poema, num brinco de orelha, numa pintura, uma escultura, uma frase: que me diga coisas que não sei. Este livro. Se o ler e gostar ou não gostar, de nada me serve nem nada me revela de maior. A não ser talvez, o essencial. Antes de o ler já me explicou duas coisas que estimo imensamente importantes:

que ler isto ou aquilo nada diz acerca de quem lê e diz muitíssimo mais sobre quem qualifica este ou aquele por lerem o que lêem;

que o preconceito que tudo isto revela, não é coisa que aconteça aos outros.

Neste sentido, e dessa presciência já ninguém o livra, o livro já me leu a mim muito antes de eu o ler a ele. Dessa não se livra o livro. Nem eu.
publicado por Rui Correia às 20:01
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3 comentários:
De daniel abrunheiro a 19 de Maio de 2006 às 11:31
dum-dum, então: contra moscas, melgas e mesquitas.
De Rui a 17 de Maio de 2006 às 15:34
Tens razão, mas que queres? As mulheres fazem isto a um homem. Até nas mesquitas elas são femininas. Como as mulheres.
De daniel abrunheiro a 17 de Maio de 2006 às 11:06
Eu acho que as mulheres são para cumprimentar em casa, não é nas mesquitas.

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