Domingo, 22 de Abril de 2007

despojo

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Um dia, assim de repente, morreu o Miles Davis. Quando as televisões interromperam a sua frivolidade costumeira para dizer isto e regressar à sua frivolidade costumeira, desatei a chorar. Foi a primeira vez que me sucedeu chorar pela morte de um músico. Intrigou-me que o meu corpo o tenha pedido. Suspeito que chorava, não apenas por aquela pulsão egoísta de quem sabe que morreu aquele que, desde sempre, fez a melhor música que eu conheço; não apenas pelo significado artístico da morte de um homem que entendia o jazz com a dignidade de uma revelação estadística; percebo hoje que chorei pela razão do costume: porque era seu amigo. A sua música, o seu percurso, o seu exemplo, as suas contradições, mas sobretudo a sua companhia sempre me aqueceram e corrigiram. Verdadeiramente, confesso que só percebi a importância da sua vida, com a sua morte. Um costume dos ignorantes.

Lembro-me que nesse ano de 1991, uns dias após a sua morte, fiz uma lista de músicos que poderiam sentar-se na mesma cadeira onde o Miles se sentou na minha vida. Havia apenas dois ou três. No topo da lista estavam os Brecker Brothers, Mike Stern, James Taylor e os Steps Ahead. Ao longo dos anos fui comprando o que havia de todos eles e ofereci a sua música aos meus amigos melhores. Percebi logo que existia um denominador comum nestes herdeiros do Miles: em todas estas bandas pontifica o som iniludível e íntegro do Michael Brecker. Quando o músico veio ao SeixalJazz, fui a correr vê-lo, num gig elegantíssimo, nova iorquino, muito Hugo Boss, muito cool, muito seguro e, sobretudo, num jazz "sobregentil" e inteligente (James Genus (b), Jeff Tain Watts (d), Joey Calderrazzo (p)). Antes disso, já o vira, embevecido, no Newport Jazz Festival onde tirei a foto que aqui colei. Os seus espectáculos foram, como sempre são, incensuráveis. A composição é primorosa, a execução, irrepreensível. "The whisperer", a sua alcunha musical, revela bem da sua candura de expressão.

O último álbum do Michael Brecker sai a 22 de Maio de 2007, pela Heads Up records. Dizem que vai ser o seu melhor álbum de sempre. Chama-se Pilgrimage. Acredito pouco nestes neóns, mas a verdade é que a lista de músicos é esta:
Patitucci, Metheny, Hancock, Mehldau e DeJohnette
. Vi-os e ouvi-os ao vivo a todos, mais do que uma vez. Foram sempre momentos singulares. Um panteão, pois. Imaginá-los juntos numa sala é algo de olímpico. Uma peregrinação, sim. No passado dia 11 de Janeiro o Michael Brecker faleceu de leucemia depois de uma intensa campanha nacional no seio da comunidade jazzística para lhe encontrar um dador compatível de medula óssea. Não fomos a tempo. Desta vez, os telejornais não mencionaram nada. Não percebem. É só isso. Não sabem. Desta vez, não faço lista nenhuma. Choro só. Pela segunda vez.



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Um dos muitos tributos a Michael Brecker publicados no youtube:


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Michael, Randy et al.


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O texto lido por Pat Metheny na homenagem fúnebre a Michael Brecker está aqui.
publicado por Rui Correia às 12:16
link deste artigo | favorito
De José Menezes a 29 de Abril de 2007 às 02:50
Pois é meu caro.A partida do Michael Brecker também me deixou um enorme buraco cá dentro.Era uma voz única,emocionante,um eterno estudioso. Vi-o várias vezes mas a que mais me impressionou foi no grupo 80/81 de Pat Metheny no Parque da Palmela em 82.Um grupo de "mágicos" : Jack DeJohnette,Charlie Haden, Dewey Redman e os já citados. O próprio Brecker disse mais tarde que aquele grupo tinha mudado para sempre a direcção do seu percurso. A música era ao mesmo tempo selvagem e de uma contenção absoluta, muito bela.Um espanto.Estranho como há tanta gente que desconhece esse grupo por completo. Abraço e felicidades para o blog
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