Não diria raro. Diria raríssimo. Brinca-se com isso desde sempre. Os cantores de ópera desafinam horrivelmente. Vozes poderosas impõem sobre a sala um volume que inadvertidamente faz pender a afinação para um qualquer lado. E, como é sabido, em matéria de afinação, qualquer lado é errado. Vozes menos poderosas vacilam clamorosamente nos sostenutos e estabelecem-se em tons que estão, amiúde, a quase meio tom de distância daquele que a partitura reclama. Ou, pior ainda, nem tanto.
Digo-vos isto para vos falar de uma maravilhosa soprano que escutei este fim-de-semana. O Teatro Nacional de Ópera da Moldávia incluiu as Caldas da Rainha na sua tournée europeia e trouxe-nos uma companhia absolutamente meã mas com uma soprano, Maria Tonina, que foi deslumbrante. Timbre, interpretação, volume e afinação: tudo absolutamente certo.
Um Rigoletto, em todo o caso, muito capaz, com uma orquestra muito competentezinha – acrescento o zinha porque as desafinações, como vos digo, sobem e descem; ao palco e ao fosso.
Evidentemente, sublinhe-se que todas estas imprecisões pertencem ao que a ópera genuinamente é. Um espectáculo popular, de massas, muitas vezes desvinculado de uma produção dispendiosa. E não se passa isto apenas na ópera, evidentemente. No âmbito estrito do teatro, tenho a certeza que muitos de nós riríamos de chacota perante algumas representações ensaiadas pelo próprio Shakespeare no seu Globe Theatre, que visitei pensando, absorto, nisto que aqui vos digo. É impensável conceber estas produções quinhentistas ou oitocentistas com o olhar e as condições exigíveis nos dias de hoje.
Mas a verdade é que estamos nos dias de hoje. E esperamos o benefício de produções cuidadas e, no limite da aspiração, afinações irrepreensíveis. E não as temos. A não ser por parte desta ave de canto extraordinária que nos elevou a alma no Domingo. Uma doçura, uma tortura, uma redenção, um martírio absolutamente convincentes e rigorosos. A certo ponto amparei, por humor, una furtiva lagrima à face da minha mulher. Sair dorido de tanto deleite, de tanta harmonia, é motivo comovente de lisonja e gratidão. Sobretudo numa ópera onde, não sei se vos disse já, quase toda a gente desafina.
Descobre-se facilmente que não sou o único encantado com esta jovem:
PS: uma nota para a lastimosa sucessão de erros de português que o folheto oficial, vendido a três insolentes euros, repetiu por toda a sala. Até um "derivado à" ali apareceu. Responsabilidade embaraçosa imputável à classicstage.pt