Todos sabem o que dizer. Aquilo no Iraque é isto ou aquilo no Iraque é aquilo. A quilo. Ao quilo. É assim que pesamos o que vemos nas televisões e lemos nos jornais. Por mim, estaco.
Não sintonizo as mesmas frequências de tantos quantos amaldiçoam a presença americana no Iraque.
Não me revejo também nas colunas dos que vêem nesta intervenção pirómana um mal menor para ilustrar a tenebrosa realidade iraquiana sob o regime cavernoso de Saddam.
Uns e outros são os mesmos que nada disseram e menos fazem ainda hoje sobre a Libéria, Serra Leoa, a Costa do Marfim ou o Rwanda quando 937.000 corpos boiavam em todos os rios que testemunharam o maior genocídio depois do Shoah (entre Abril e Junho de 1994 morreram cerca de 800.000 ruandeses). Arranha-céus da iniquidade humana. Ao lado desta, só esta, calamidade, a guerra iraquiana é uma brincadeira de crianças. Ao lado desta, só esta, até a guerra civil espanhola empalidece na mortandade (1936-1939 - 660.000 mortos). Ao lado desta, só esta, as duas bombas atómicas juntas não passaram de um fogacho ao longe (340.000 vítimas).
Diz-se à boca cheia que em alguns continentes não se dá qualquer valor à vida humana. A avaliar pelo que (não) vemos nos media, é inexorável concluir que o "mundo ocidental" não dá valor algum à vida humana, desde que seja vida africana ou vida asiática. Longe da vista, longe do coração é a regra de ouro desta sorte de beatitude culposa em que vive a dita "opinião pública internacional".
No Burundi há hoje 800.000 hutus deportados em "campos de reagrupamento" e entre Tutsis e Hutus, já morreram desde 1991, cerca de 100.000 pessoas (dados da Academia Nobel).
Mesmo considerado apenas o universo americano, a falácia é iniludível. Nas autoestradas americanas, só contando as autoestradas, durante um ano, morre seis vezes mais gente (4451 em 2002) do que, até hoje, americanos em toda a guerra do Iraque (723, desde 1 de Maio de 2003 até 17 de Maio de 2004, segundo o site www.iraqbodycount.net).
O recente acidente ferroviário na Coreia do Norte matou 3000 seres humanos, o mesmo que na tragédia do 11 de Setembro.
Parece que o que conta não é a dimensão das tragédias, mas a dimensão que seja dada às tragédias. Tudo calado, à excepção das vozes costumeiras. A AMI está em dezenas de países e quase nenhum deles está nas parangonas dos jornais. A FAO - lembram-se da FAO? - apela constantemente à opinião pública que recorde o que se passa no Chade, no Sudão, Lesoto, Eritreia e dezenas de países com fome. Nada nos move a não ser a novidade, que se apoia sempre na indignação e na compaixão, dois rápidos sentimentos que, por tão rápidos, se adequam na perfeição à velocidade dos nossos dias e à ligeireza das nossas reflexões.
Calados, enquanto os iraquianos gaseavam até à morte 5000 pessoas numa área semelhante ao Minho e Trás-os- Montes juntos; calados, quando no Afeganistão, as mulheres eram atadas a um poste no meio de um estádio de futebol e apedrejadas por milhares de homens até à morte por serem adúlteras. Calados enquanto uma China impõe limites furiosos à natalidade tibetana.
Quando coloco estas questões em confronto, há sempre quem reaja e lute contra a mera verificação de variedade de perspectivas. A pluralidade exige que coloquemos em causa algumas certezas que desejamos, no mínimo, absolutas. Existe, é preciso sabê-lo, uma escala de horrores neste mundo e não está patente nos jornais, nem nas notícias.
Não é aceitável a alguém com memória que ostensivamente ignore esta diversidade, como se a reluzente navalha da sensibilidade humana não passasse de uma gasta lâmina descartável.
E, mesmo assim, somos contra e a favor de tudo o que esteja na moda. Somos contra a intervenção americana, contra a eliminação dos curdos. Contra as ditaduras clânicas somalis que assaltam todos os comboios humanitários e contra a intervenção estrangeira na Somália. A favor da democracia e calados com o fracasso vergonhoso da democracia na Argélia, onde os fundamentalistas islâmicos ainda aguardam que lhes seja dada razão por ganharem as eleições com a mesma frequência com que lhes é negado o poder, desde 1992. Contra o muro em Israel e a favor do muro no Chipre. Novamente, a realidade é desfocada a bel-prazer e ninguém parece esforçar-se por perseguir a complexidade destes fenómenos. Nada corrige o fervor de ter opinião.
Novamente aprendo: sabemos tanto mais quanto mais sabemos que o que sabemos é habitualmente quase nada. O resto vai-se vendendo ao quilo. Com excedentes de produção. Mas a comoção não há-de ser um arquivo morto, nem os apocalipses tão simplesmente descartáveis.
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Links a não perder para quem queira fugir à moda de estar a favor deste ou contra aquele para ignorar aqueloutro.
Sobre a FAO e países com fome.Sobre a evolução dos conflitos armados no mundo desde 1900 até 2000, um extraordinário mapa interactivo do Instituto Nobel.Sobre a violação de direitos humanos OFFICE OF THE UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS.________________________
Shalom Salaam Pace Pax Peace Paz
Não há "caminhos para a paz"; a paz é o caminho.