Sábado, 15 de Maio de 2004

apocalipses descartáveis

Todos sabem o que dizer. Aquilo no Iraque é isto ou aquilo no Iraque é aquilo. A quilo. Ao quilo. É assim que pesamos o que vemos nas televisões e lemos nos jornais. Por mim, estaco.

Não sintonizo as mesmas frequências de tantos quantos amaldiçoam a presença americana no Iraque.

Não me revejo também nas colunas dos que vêem nesta intervenção pirómana um mal menor para ilustrar a tenebrosa realidade iraquiana sob o regime cavernoso de Saddam.

Uns e outros são os mesmos que nada disseram e menos fazem ainda hoje sobre a Libéria, Serra Leoa, a Costa do Marfim ou o Rwanda quando 937.000 corpos boiavam em todos os rios que testemunharam o maior genocídio depois do Shoah (entre Abril e Junho de 1994 morreram cerca de 800.000 ruandeses). Arranha-céus da iniquidade humana. Ao lado desta, só esta, calamidade, a guerra iraquiana é uma brincadeira de crianças. Ao lado desta, só esta, até a guerra civil espanhola empalidece na mortandade (1936-1939 - 660.000 mortos). Ao lado desta, só esta, as duas bombas atómicas juntas não passaram de um fogacho ao longe (340.000 vítimas).

Diz-se à boca cheia que em alguns continentes não se dá qualquer valor à vida humana. A avaliar pelo que (não) vemos nos media, é inexorável concluir que o "mundo ocidental" não dá valor algum à vida humana, desde que seja vida africana ou vida asiática. Longe da vista, longe do coração é a regra de ouro desta sorte de beatitude culposa em que vive a dita "opinião pública internacional".

No Burundi há hoje 800.000 hutus deportados em "campos de reagrupamento" e entre Tutsis e Hutus, já morreram desde 1991, cerca de 100.000 pessoas (dados da Academia Nobel).

Mesmo considerado apenas o universo americano, a falácia é iniludível. Nas autoestradas americanas, só contando as autoestradas, durante um ano, morre seis vezes mais gente (4451 em 2002) do que, até hoje, americanos em toda a guerra do Iraque (723, desde 1 de Maio de 2003 até 17 de Maio de 2004, segundo o site www.iraqbodycount.net).

O recente acidente ferroviário na Coreia do Norte matou 3000 seres humanos, o mesmo que na tragédia do 11 de Setembro.

Parece que o que conta não é a dimensão das tragédias, mas a dimensão que seja dada às tragédias. Tudo calado, à excepção das vozes costumeiras. A AMI está em dezenas de países e quase nenhum deles está nas parangonas dos jornais. A FAO - lembram-se da FAO? - apela constantemente à opinião pública que recorde o que se passa no Chade, no Sudão, Lesoto, Eritreia e dezenas de países com fome. Nada nos move a não ser a novidade, que se apoia sempre na indignação e na compaixão, dois rápidos sentimentos que, por tão rápidos, se adequam na perfeição à velocidade dos nossos dias e à ligeireza das nossas reflexões.

Calados, enquanto os iraquianos gaseavam até à morte 5000 pessoas numa área semelhante ao Minho e Trás-os- Montes juntos; calados, quando no Afeganistão, as mulheres eram atadas a um poste no meio de um estádio de futebol e apedrejadas por milhares de homens até à morte por serem adúlteras. Calados enquanto uma China impõe limites furiosos à natalidade tibetana.

Quando coloco estas questões em confronto, há sempre quem reaja e lute contra a mera verificação de variedade de perspectivas. A pluralidade exige que coloquemos em causa algumas certezas que desejamos, no mínimo, absolutas. Existe, é preciso sabê-lo, uma escala de horrores neste mundo e não está patente nos jornais, nem nas notícias.

Não é aceitável a alguém com memória que ostensivamente ignore esta diversidade, como se a reluzente navalha da sensibilidade humana não passasse de uma gasta lâmina descartável.

E, mesmo assim, somos contra e a favor de tudo o que esteja na moda. Somos contra a intervenção americana, contra a eliminação dos curdos. Contra as ditaduras clânicas somalis que assaltam todos os comboios humanitários e contra a intervenção estrangeira na Somália. A favor da democracia e calados com o fracasso vergonhoso da democracia na Argélia, onde os fundamentalistas islâmicos ainda aguardam que lhes seja dada razão por ganharem as eleições com a mesma frequência com que lhes é negado o poder, desde 1992. Contra o muro em Israel e a favor do muro no Chipre. Novamente, a realidade é desfocada a bel-prazer e ninguém parece esforçar-se por perseguir a complexidade destes fenómenos. Nada corrige o fervor de ter opinião.

Novamente aprendo: sabemos tanto mais quanto mais sabemos que o que sabemos é habitualmente quase nada. O resto vai-se vendendo ao quilo. Com excedentes de produção. Mas a comoção não há-de ser um arquivo morto, nem os apocalipses tão simplesmente descartáveis.

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Links a não perder para quem queira fugir à moda de estar a favor deste ou contra aquele para ignorar aqueloutro.

Sobre a FAO e países com fome.


Sobre a evolução dos conflitos armados no mundo desde 1900 até 2000, um extraordinário mapa interactivo do Instituto Nobel.


Sobre a violação de direitos humanos OFFICE OF THE UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS.


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Shalom Salaam Pace Pax Peace Paz
Não há "caminhos para a paz"; a paz é o caminho.
publicado por Rui Correia às 16:58
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2 comentários:
De frangipani a 17 de Maio de 2004 às 19:47
http://www.nobel.se/peace/educational/conflictmap/conflictmap.html

Belo.
De rui a 16 de Maio de 2004 às 14:36
Três leituras necessárias:

entrevista a Jacques Paul Klein, chefe da missão de paz da ONU na Libéria, publicado na Visão pelo Pedro Rosa Mendes (que eu sei que conheço de algum lado na minha vida, será Coimbra?...) "Eu não falo com Washington".

http://www.visaoonline.pt/paginas/Conteudo.asp?CdConteudo=32625

Sílvia Souto Cunha na mesma Visão com "Bagdad, a escalada do medo"

http://www.visaoonline.pt/paginas/Conteudo.asp?CdConteudo=32625

Um texto muito elucidativo do Pedro Rosa Mendes que digitalizei e coloquei disponível para que se não perca o que este tipo escreve (190kb)

http://clientes.netvisao.pt/rjoseant/varia/killbin02.jpg

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